Encantado no meio do povo: a presença do Profeta São João Maria em Santa Catarina
O livro de Tânia Welter vai interessar a vários leitores. Sua prosa leve e fluente nos estimula à leitura e à reflexão ao levar-nos através de um universo contemporâneo em que a religiosidade vinculada a uma figura santa perpassa classes sociais, religiões e etnias. Estimulada por sua própria vivência como pesquisadora e professora, Tânia Welter chega à figura de João Maria sem se deter numa exploração histórica do monge João Maria e da Guerra do Contestado, tema tão amplamente tratado por vários pesquisadores. Antes, explora a contemporaneidade do universo das relações sociais que chama de “joanino”: o universo hoje dos devotos do monge João Maria. Dialoga, no entanto, com historiadores e antropólogos que tem se dedicado ao tema.
Sem descuidar de uma metodologia apropriada, mostrando ao
leitor seu processo de produção, o texto não se faz num jargão acadêmico restrito. No entanto, o leitor será conduzido às reflexões teóricas e delas desfrutará se assim escolher. Começa aqui a manifestação do respeito da autora com aqueles que se envolvem ou envolveram em seu trabalho. Ao construir a designação joanino para seu universo de pesquisa, Welter não está construindo um tipo ideal. Joanino é, antes, um dispositivo de interpretação que possibilita mostrar características de um universo multifacetado o que, em consequência, permite conhecer a amplitude do valor social e cultural da figura do monge até hoje, passados mais de 100 anos de sua morte. Esta amplitude corresponde a uma gama de “apropriações” da figura do monge em rituais que se propagam independentemente da pertença religiosa das pessoas e na definição de lugares santificados por ele. A progressiva e relativamente rápida introdução das igrejas pentecostais num universo primordialmente católico não fez regredir a devoção ao monge nem os rituais a ele relacionados.
A abordagem de Welter se contrapõe à folclorização do monge e do episódio histórico de sua origem – a Guerra do Contestado (1912-16). Tratada pelas pessoas do universo joanino como Guerra Santa, é este o fato histórico a que a memória de João Maria remete. Welter trata também com um respeito profundo as populações com quem conviveu
durante seu longo e extenso trabalho de pesquisa. O trabalho de pesquisa é um ponto alto deste livro, não só pela extensão do campo coberto mas pelo cuidado com que os registros foram feitos e organizados. É digno de nota o mérito de pesquisadora de Tânia Welter que imergiu no seu campo sem perder a perspectiva da meta de seu trabalho.
Ela mostra, então, como João Maria é ainda a figura que justifica estruturações familiares e sociais e até, em certos casos, conduz ao empoderamento feminino. Mostra como os elementos que constituem a santidade de João Maria desvendam um universo de valores sociais que perpassam classes, etnias e pertenças religiosas. Mostra como sua
santificação pelas pessoas e famílias conduz a uma identificação com a natureza ao associar o monge com águas limpas e campos férteis, e que a perspectiva do fim do mundo está presente em muitas formulações de João Maria como profeta. Mostra, ainda, que João Maria é um fator de agregação nas lutas campesinas e que tanto o poder político como o poder eclesiástico se apropriam da figura do monge de formas e em ocasiões específicas.
O livro encerra com um denso capítulo de reflexões teóricas que respondem pelo competente tratamento do material de campo. Por outro lado, são um estimulo ao nascimento de novas questões e perguntas a serem respondidas por outras pesquisas no campo das religiosidades. Neste livro, para além do dito, o propósito de incitar perguntas foi plenamente cumprido. Boas respostas conduzem a novas perguntas.
Apresentação do livro por Maria Amélia Schmidt Dickie.
Referência
WELTER, Tânia. Encantado no meio do povo: a presença do Profeta São João Maria em Santa Catarina. Sao Bonifacio: Edições do Instituto Egon Schaden, 2018.